terça-feira, 1 de maio de 2012

cota racial é coisa de preto - dizemos @s branc@s

o que é ser branc@ num país racista


esse não é um texto sobre cotas raciais. não vou mentir: a minha intenção inicial era, frente a todos esses desaforos que tenho de engolir no facebook, falar de cotas raciais. que estupidez a minha. eu nunca sofri racismo - tenho um cabelo quase crespo que me ensinaram a odiar e a alisar, tenho um nariz de coxinha que já quis modificar, mas não posso dizer que já tenha sido discriminada por causa da minha cor, isso porque eu sou branca. eu escuto negr@s falando sobre a necessidade de criar tal política de inclusão, leio sobre o assunto, e já me livrei do discurso falacioso que, apoiado numa pretensa democracia racial/miscigenação, deslegitima -ultimamente, mais tenta do que de fato deslegitima - qualquer mobilização da negritude brasileira. mas dizer que a luta contra o racismo nasceu das minhas entranhas, filha de meu próprio sofrimento, seria uma mentira. a luta contra o racismo nasceu em mim num sentimento de alteridade, de um projeto de sociedade que alimento. e eu não posso falar duma dor que, efetivamente, eu não conheço. eu quase me rendi ao ímpeto de falar  pel@s negr@s - de novo. eu quase fui mais uma à perpetuar a história. mas @s branc@s precisamos aprender a silenciar também. @s branc@s precisamos, antes despejar mais uma vez nossas verdades sobre a negritude, baixarmos nossas cabeças brancas e escutar, dessa vez atentamente, ao que @s negr@s têm a dizer - porque libertá-los do jugo da escravidão foi uma necessidade nossa, não um favor, e ao mesmo tempo uma mentira.



as cotas raciais, mais uma vez, escancaram a hipocrisia branca, e me motivam a falar de um tema que pra mim também é novidade: a branquitude . isso porque as falas contrárias às cotas raciais só citavam @s negr@s para chamá-l@s de racistas - a auto-vitimização d@ branc@ parece definir o perfil de um/uma verdadeir@ agressor/agressora: apropriam-se do discurso da vítima para fazê-la se sentir culpada pela sua própria condição.

eu sou branca. e, ah!, maldito costume de desvalorizar a história!, eu não sei qual é a minha descendência. mas um bisavô proprietário de muitas terras me faz vislumbrar algo. e assim como história do brasil explica como se dão as relações familiares de amigas negras, baseadas no medo, na baixa auto-estima, numa eterna necessidade de auto-afirmação e, paradoxalmente, na negação da negritude, eu entendo que minha origens provavelmente europeias (embora "miscigenada") me ensinaram qual é o lugar que eu devo ocupar no mundo.

tenho tias-avós (sem o "@" porque nunca tive muito contato com os tios) que, literalmente, viram a cara pra uma pessoa negra. eu disse pessoa negra? provavelmente elas sequer atestariam a validade de tal expressão. eu disse pessoa negra? basta ser minimamente "moreninho" (talvez com uma descendência árabe ou indígena) para provocar asco nessas tias-avós. e antes que usem esse trecho do meu texto pra dizer que o racismo não é contra @s negr@s, vale salientar que o critério de 'avaliação' utilizado nos tribunais íntimos do racismo brasileiro é o quão próximas suas características físicas estão da negritude - e à medida em que você se assemelha a um/uma europeu/europeia, você é considerad@ gente. esse é um racismo mais evidente, mas nem de longe é o único. há outros mais sutis e talvez, por isso mesmo, mais perigosos.

dentro de casa, cresci ouvindo que meu nariz era de preto - e é lógico que eu me sentia realmente ofendida. rap era música de preto, e eu sabia que não devia ouvi-la. o meu cabelo era muito enrolado e volumoso, ou seja, cabelo de preto, cabelo ruim, e eu devia alisá-lo. e foi assim que eu cresci: sabendo que, se eu quisesse me afirmar enquanto qualquer coisa aceitável, eu primeiro precisaria negar qualquer traço negro, fosse físico ou cultural. e se esse processo dentro de casa era doloroso, na rua era natural. porque se alguém da família dizia que meu nariz era de preto e isso doía em mim, na rua frente aos/às negr@s eu estava em uma posição privilegiada. à época eu não conseguia identificar isso como o meu racismo, mas eu via que, meu cabelo podia até ser armado, mas não era duro. meu nariz era de coxinha, mas não tanto assim. e eu tinha amigas negras (eu me lembro do quanto eu achava bizarro que minha mãe falasse sobre isso como uma qualidade minha. eram só minhas amigas, e nada podia ser mais natural que crianças terem amigas) mas, no fundo, no fundo, eu sabia que elas não eram tão bonitas quanto eu - embora meu cabelo e nariz de preto me enfeiassem bastante. o incômodo com o racismo terminava no momento em que ele me conferia privilégios.

o que eu tô tentando dizer é que, da herança de um país escravagista, cada um ficou com o seu pedaço: negr@s com a subalternização e branc@s com a superioridade. minhas tias-avós (as únicas que me detive a citar, mas nem de longe as únicas racistas da família, além de mim mesma) não são vilãs, não são umas bruxas sem coração: elas são, também, fruto da história do brasil. um passado escravagista recente e nitidamente não superado.

ver a luta negra pela implementação de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras sendo tão severamente combatida, mostra a dor de cotovelos d@s branc@s em relação à ocupação dos espaços acadêmicos pel@s negr@s. e nesse debate toda sorte de argumentos já foi utilizada, dos mais toscos aos mais polidos e  politicamente corretos, mas todos igualmente falaciosos.

cota racial é racismo, dizemos @s branc@s. mas pelo visto cota social não é discriminação de classe.  isso porque a ideia da sociedade se organizar, não como seres humanos, mas enquanto negr@s é extremamente ultrajante. porque dar garantia de acesso ao ensino superior a um grupo minoritário que não inclua branc@s é intragável. falamos do quão racista é essa medida, sem questionar por que há necessidade de destinar 20% das vagas para a população negra/parda. sem questionar por que os outros 80% das vagas do vestibular são chamadas de universais enquanto nós sabemos que a maioria es-ma-ga-do-ra delas será ocupada por branc@s.

cotas sociais resolvem os dois problemas: dos negros e dos pobres. é o que eu tenho ouvido aos montes. mas não paramos, @s branc@s, pra pensar que, se incluir pobre na universidade significa necessariamente incluir negr@s, é porque a negritude sempre esteve atrelada à pobreza e à marginalização nesse país. e essas são @s branc@s favoráveis a políticas inclusivas. o problema que el@s vêem é que as medidas inclusivas se destinem especificamente à negritude. dizem que não há raças, mas defendem, ainda que não falem nesses termos, que outras raças possam ser beneficiadas por essas políticas. sim, porque sempre falam branco pobre quando defendem as cotas sociais.

cotas raciais não vão resolver o problema da educação no brasil. de fato, não vão resolver todos os problema da educação no brasil. mas quer saber de uma coisa? eu acredito que resolvam vários problemas da educação no brasil. primeiro porque eu quero ver negr@s historiador@s, bisnet@s de escravos, falando de escravidão no país. depois porque eu imagino que estudantes negr@s devem estar cansados de ter professor@s branc@s que temem @s alun@s por serem negr@s, que deslegitimam suas falas quando el@s citam um rap da periferia, que dizem que no brasil não há raças, quando el@s estão cansados de saber que ou el@s se matam de trabalhar pra ganhar muito menos que qualquer branc@, ou terão grandes chances de serem chamados de bandid@s. e se ess@s negr@s cotistas se propuserem a lutar pela causa negra, muitas outras mudanças estruturais acontecerão na sociedade. eu quero ver diplomatas negr@s. juízes negr@s. médic@s negr@s. e quero ver na mesma proporção em que vejo branc@s. e, no dia em que isso acontecer, eu vou saber que a educação no brasil está mudando, pra melhor.

cotas só vão aumentar as tensões entre brancos e negros. tá vendo como você sabe que o brasil é dividido (também) em raças? e esse argumento é o mais curioso: é praticamente uma ameaça. olha, se você for cotista, eu vou te olhar torto. é melhor você nem dizer que é cotista (na verdade, você não devia nem dizer que é negro, porque o brasil é miscigenado, mis-ci-ge-na-do, entendeu?!), porque aí eu vou saber o quão incapaz você é de passar no vestibular honestamente, como eu. e não venha me dizer que eu consegui porque eu sou branca, seu preto racista!

falam-se tantas coisas, tantas asneiras. juram falar em nome da sociedade, mas a todo tempo defendem-se a minha vaga, o meu esforço, a qualidade do meu curso. faltam dizer: leva meu celular, ó!, só não rouba a minha vaga no vestibular. eu ouso dizer que se houvesse cotas raciais para gari, nenhum/nenhuma branc@ se oporia. assim como há cotas raciais nos presídios, nos manicomios, nas populações de rua, nas filas de hospitais públicos, mas essas são cotas de 90% para negr@s, e nenhum branc@ tá lá lutando por direito de ocupar esses espaços. tá mais do que óbvio que o problema é preto querer ser doutor.


ser branc@ no brasil é ser cúmplice de todas essas práticas excludentes, é perpetuar o racismo com toda a pompa que qualquer outro discurso hegemônico tem. e, nesse momento, eu posso dizer que é vergonhoso pra mim.



esse foi o desabafo de uma branca racista cansada da hipocrisia branca que se pretende justa e igualitária. o desabafo de uma racista cansada do racismo.